terça-feira, 15 de abril de 2014

Alterações à regulamentação da marcha. 2 - abastecimento e refrescamento

Foto: Jeff Salvage
O blogue «O Marchador» publica hoje o segundo de dois textos da autoria do juiz internacional de marcha Joaquim Graça sobre as alterações introduzidas recentemente na regulamentação da AIFA respeitante à marcha atlética. Neste texto, o autor faz uma abordagem específica das alterações relacionadas com o abastecimento e o refrescamento.

Para o final ficou a análise ao ponto 9.(h) da regra 230, que foi agora incorporado a esta regra com uma nova e mais extensa versão do ponto 9.(g) anteriormente vigente e que, por este motivo, requer uma reflexão um pouco mais pormenorizada. Para o efeito, transcreve-se de seguida aquele novo ponto, em tradução não oficial da versão do Regulamento Técnico internacional em língua inglesa:

O atleta que receba ou recolha abastecimento ou água num local que não os postos oficiais, excepto quando fornecido devido a razões médicas pelos oficiais da prova ou sob a direcção destes, ou que fique na posse do abastecimento de outro atleta deverá, na primeira de uma tal infracção, ser advertido pelo Árbitro, por norma mostrando-lhe um cartão amarelo. Por uma segunda infracção, o Árbitro desclassificará o atleta, por norma mostrando-lhe um cartão vermelho. O atleta sairá, então, imediatamente do percurso.

A par da autorização do fornecimento de abastecimento ou de água, por razões médicas, fora dos postos oficiais de refrescamento ou abastecimento – uma possibilidade que, até agora, não se encontrava prevista –, fica estabelecido que a recolha (ou recepção) de abastecimentos ou refrescamentos nas demais condições enunciadas passa a constituir uma infracção de ordem disciplinar, correspondente a um comportamento impróprio ou antidesportivo do atleta infractor, quando, anteriormente, configurava uma mera infracção técnica, sendo aquela nova qualificação susceptível de implicar uma carga penalizadora mais pesada sobre o referido atleta.

Tratando-se, pois, de uma infracção disciplinar, aquela encontra-se, igualmente, sob a alçada do ponto 2 da regra 145, o qual regula os efeitos das sanções disciplinares aplicáveis, determinando, nomeadamente, que o atleta que seja advertido por comportamento impróprio ou antidesportivo em duas provas diferentes de uma competição será desclassificado na segunda dessas provas – mantendo, no entanto, para todos os efeitos, a classificação e a marca da primeira –, do mesmo modo que o é quando, numa mesma prova, é sancionado devido a duas infracções por comportamento daquela natureza. Nesta medida, embora não se encontre explicitada em nenhum dos referidos pontos regulamentares a sua dupla abrangência sobre as infracções acima descritas, há que ter em devida consideração as consequências que advêm da sua aplicação.

Assim, a sanção para o atleta que cometa uma primeira infracção relativa à recolha de refrescamentos ou abastecimentos será, desde logo, a desclassificação (por motivos disciplinares) se, na mesma prova, ele já tiver sido advertido devido a uma outra infracção disciplinar, incluindo-se neste caso a situação em que essa outra infracção é cometida quando o atleta, antes do início da prova, se encontra na câmara de chamada ou na transição entre esta e a área de competição. De igual modo, a primeira infracção relativa à recolha de abastecimentos ou refrescamentos acarretará a imediata desclassificação da prova em que for cometida se o atleta tiver sido advertido por uma infracção disciplinar de qualquer natureza numa prova anterior da mesma competição – o que pode suceder em competições como os Jogos Olímpicos, os Campeonatos do Mundo ou da Europa com atletas (masculinos) que participem em ambas as provas de 20 km e 50 km marcha.

Note-se que as advertências e as desclassificações a que acima se alude são de ordem exclusivamente disciplinar, sendo a sua aplicação da competência única do juiz-árbitro da prova em que ocorrem, não se incluindo, pois, nas referidas advertências as que são atribuídas pelos juízes de marcha, assinaladas pelas raquetas amarelas, em conformidade com o ponto 4 da regra 230.

Como consequência suplementar das desclassificações pelos motivos aqui abordados, dado o carácter disciplinar daquelas, pode haver lugar ao afastamento do atleta infractor da competição – aqui será mesmo apropriada a utilização da palavra desqualificação –, caso o juiz-árbitro assim o decida, nos termos do ponto 2 da regra 145, que também determina que, sendo considerada grave, a infracção será comunicada à entidade competente, que poderá, se o entender, agir disciplinarmente sobre o atleta.

Estas normas respeitantes ao fornecimento e utilização de refrescamentos e abastecimentos, incluídas no ponto 9 da regra 230, traduzem um propósito de colocar num plano de equidade a componente estradista da marcha e as corridas de estrada, na medida em que a redacção do ponto 9.(h) da regra 230 (acima transcrito) é exactamente igual à do ponto 8.(h) da regra 240 – a qual regula aquele tipo de corridas –, o mesmo sucedendo com os pontos 9.(g) da regra 230 e 8.(g) da regra 240 – sobre o transporte de refrescamentos ou abastecimentos pelos atletas –, assim como com a nota aditada ao ponto 9.(f) da regra 230 e a nota aditada ao ponto 8.(f) da regra 240 – sobre o número permitido de oficiais de cada país presentes nas mesas de abastecimento.

Em todo o caso, é natural que, em face de alterações deste teor, se levantem interrogações ou dúvidas sobre a necessidade e o alcance das mesmas. Poderá questionar-se se a quantidade e a gravidade de casos ocorridos justificará a remissão das infracções acima mencionadas para o foro disciplinar, relativamente ao qual normalmente se pressupõem a existência de uma intenção do infractor de prejudicar ou ofender outrem, e cuja única instância de decisão é o juiz-árbitro, não havendo, pois, lugar a qualquer possibilidade de recurso para a instância decisória superior (júri de apelo). Não é difícil admitir, por exemplo, que, devido a uma situação de confusão junto das mesas de abastecimento, que por vezes se verifica, um atleta se aposse não intencionalmente de um recipiente de abastecimento de outro atleta.

Encarando este conjunto de regras numa perspectiva preventiva e dissuasora, o melhor será mesmo que cada atleta tenha sempre o cuidado de recolher apenas os seus próprios abastecimentos.

Texto: Joaquim Graça